Isaac Abravanel e Abraham Senior - Carta aos Reis da Espanha
- Jefferson Linconn
- 15 de nov. de 2019
- 6 min de leitura

Escreve Alexey Dodsworth de Carvalho em sua página do FB:
"Visto que é ano novo hebraico, trago pra vocês um documento-testemunho de um dos momentos mais infames da história ocidental.
Em 1492, os reis da Espanha fizeram publicar o Edito de Expulsão, que determinava que a partir de determinada data [31 de julho daquele ano], todos os judeus deveriam se converter ao catolicismo ou deixar a Espanha para nunca mais voltar. Quem não saísse e não se convertesse, seria convertido em matéria inanimada.
Nesta época, dois amigos tentaram impedir isso: Isaac Abravanel e Abraham Senior. O fato divertido é que Isaac Abravanel é o décimo oitavo avô de Silvio Santos [cujo nome real é Senor Abravanel]. E Abraham Senior é meu vigésimo avô. Ambos os casos comprovados por estudos genealógicos bem documentados. Se você descende de nordestinos cujos sobrenomes são Saboia, Ximenes, Aragão, Koren, é altamente provável que também descenda de Abraham Senior. Se seu sobrenome for Coronel, a probabilidade sobe para quase certeza absoluta.
Abraham Senior era o rabino-mor da Espanha. O cargo era mais político que espiritual. Ele era arrecadador de impostos, gozava da amizade dos reis e atuava como um diplomata na relação com o povo hebreu. Isaac Abravanel, por sua vez, era um teólogo e escritor. Apesar da grande diferença de idade [Abraham tinha 80 anos, e Isaac poderia ser filho dele], criou-se um poderoso laço espiritual entre ambos. Além de tudo, os dois eram imensamente ricos.
Daí que, com toda sua riqueza, Abraham e Itzak se juntaram para tentar reverter o Edito Real que forçava à conversão ou expulsão do povo judeu. Ofereceram aos reis da Espanha uma soma assombrosa, que foi recusada.

Abraham, meu ancestral [e também ancestral de vários dos que me lêem e não sabem disso], submeteu-se à conversão. Ir embora da Espanha não era uma opção muito boa, dada a sua idade avançada. Mudou de nome para Fernão Peres Coronel. Suprema humilhação: seu nome é uma alusão ao mesmo rei [Fernando] que o obrigou a abdicar de sua cultura.
Isaac, por sua vez, foi embora da Espanha para Nápoles, mas antes fez uma deliciosa carta em que praticamente manda os reis espanhóis à merda. Abraham subscreveu a carta. É o teor dela que eu faço questão de que vocês leiam com atenção. Porque ela ilustra bem o perigo que é quando o Estado se norteia pelo absolutismo religioso, seja ele qual for.
"Majestades,
Abraham Senior e eu agradecemos esta oportunidade para fazer nossa última expressão em palavras, trazendo a voz das comunidades judias que nós representamos, condes, duques e marqueses das cortes, cavalheiros e damas.
Não é uma grande honra quando um judeu é chamado a dar atenção ao bem-estar e segurança de seu povo.
Mas é uma desgraça ainda maior quando o Rei e a Rainha de Castilla e Aragón, e por conseguinte de toda a Espanha, precisam buscar a própria glória em cima de gente inofensiva.
Me é muito difícil compreender de que maneira todo homem judeu, mulher e criança possam ser uma ameaça à fé católica.
Posição muito forte, esta.
Somos nós que destroçamos [sua fé]?
É exatamente o oposto. Vocês não estão admitindo, com este Edito que confinam judeus em lugares restritos e com tantas limitações em nossos privilégios legais e sociais, sem mencionar que nos obrigam a distúrbios humilhantes? Não foram suficientes as opressões impostas? Vocês já não nos aterrorizaram com sua diabólica Inquisição?
Pois deixem-me tornar este assunto duro o suficiente para que todos os presentes não deixem calar a voz de Israel neste dia.
Escutai, ó Céu, e permita que o Rei e a Rainha da Espanha escutem a mim, Isaac Abravanel. Eu e minha família somos descendentes do Rei Davi, e o verdadeiro sangue real do Messias corre em minhas veias. É minha herança, e eu o proclamo em nome do Rei de Israel. (...)
Este decreto será sua derrota. Este ano, que vocês imaginam como sendo o ano de sua maior glória, será conhecido como a maior vergonha da Espanha. (...) Quando Reis e Rainhas cometem feitos duvidosos, cometem danos contra si mesmos. E como bem se diz, quanto maior for a pessoa que comete o erro, tanto maior o erro será.
Erros, se reconhecidos no tempo certo, podem ser corrigidos, e a base que suporta a estrutura pode ser novamente colocada na posição correta. Assim, mesmo um Edito errado, se mudado a tempo, pode ser corrigido. Porém, objetivos religiosos dominaram a razão, e maus conselhos se sobrepuseram ao justo raciocínio. (...) Escutem-me bem: um erro como este, tão profundo, a Espanha jamais viu. (...)
Com quem direito seus inquisidores percorrem os campos, queimando livros aos milhares em praças públicas?
Com que autoridade os membros da Igreja desejam agora queimar a imensa Biblioteca Árabe deste grande palácio mouro e destruir seus preciosos manuscritos? É por sua autoridade, meu Rei e minha Rainha! Por sua!
No fundo de seus corações, vocês desconfiaram do poder do conhecimento. E vocês respeitam apenas o poder. No que diz respeito a nós judeus, é diferente. Nós judeus admiramos e estimulamos o poder do conhecimento. Em nossos lares e em nossos lugares de oração, a aprendizagem é a meta de toda uma vida. A aprendizagem é nossa paixão que dura enquanto existimos. É o coração de nosso ser. É a razão pela qual fomos criados. Nosso agressivo amor pelo aprendizado poderia ter contrabalançado o seu excessivo amor ao poder. Nós poderíamos ter nos beneficiado da proteção oferecida por suas armas reais, enquanto vocês se beneficiariam dos avanços de nossa comunidade e do intercâmbio de conhecimento. Poderíamos nos ter ajudado mutuamente.
Mas assim como vocês nos fazem lembrar de nossa falta de poder, digo que sua nação sofrerá com o desequilíbrio que vocês deram início. Por séculos futuros, os seus descendentes pagarão pelos erros atualmente tão apreciados. Sua nação se transformará em uma nação de conquistadores. Buscando ouro e riquezas, vivendo pela espada e reinando com punho de aço.
Mas ao mesmo tempo vocês se converterão em uma nação de analfabetos. Suas instituições de conhecimento, apavoradas pela heresia das ideias estranhas de outras terras e outras gentes, não serão respeitadas. Com o passar do tempo, o nome tão admirado da Espanha se converterá em um sussurro entre nações. A Espanha, que sempre foi pobre e ignorante, a Espanha que tanto prometeu e completou tão pouco. E um dia a Espanha perguntará a si mesma: o que houve conosco? Por que somos a piada dentre as nações? E os espanhóis deste dia olharão para o passado, em busca da resposta. (...) E a causa de toda decadência revelará ninguém mais que não seus reverenciados reis católicos, Fernando e Isabel, Conquistadores dos Mouros, Banidores de Judeus, Fundadores da Inquisição e Destruidores das Mentes Espanholas.
O Edito de vocês é o testemunho da debilidade cristã. (...) Desejando silenciar a oposição judia, a maioria cristã decidiu não seguir argumentando. Preferiu eliminar a fonte do argumento. (...)
Esta é a última oportunidade de trazer este tema em terra espanhola. Nestes últimos momentos de liberdade outorgada pelo Rei e pela Rainha, e como representante do povo judeu, toco num ponto de disputa teológica. Deixarei vocês com uma mensagem de adeus que vocês não vão gostar. (...)
Vocês podem converter todos os povos, todos os selvagens do mundo, porém enquanto não converterem o judeu, vocês só terão provado a capacidade de persuadir a quem não está informado.
Os deixamos com este reconfortante conhecimento. Porque vocês podem dispor de seus poderes, mas nós possuímos a verdade. Vocês poderão nos dilapidar como pessoas, porém não poderão dilapidar nossas almas, nem a verdade histórica da qual somos único testemunho. (...)
Expulsem-nos desta terra que amamos tanto quanto vocês. Lembraremos de vocês, Rei e Rainha da Espanha, no rol dos que figuram em nossos livros como aqueles que quiseram nosso mal. Nós judeus, com vossos feitos nas páginas da história, assim como a recordação de nossos sofrimentos, tudo isso fará mais mal aos SEUS homens do que a nós."
______
Quinhentos anos depois, o governo espanhol promulgou a lei que reconhece como cidadãos espanhóis os judeus que partiram ou se converteram para não morrer.
Fonte das informações: “O Legado do Rabino Abraham Senior”, Candido Pinheiro Koren de Lima.
(A tradução do espanhol da carta de Isaac Abravanel é minha, logo eventuais erros são minha responsabilidade).
Outras informações acerca de Dom Isaac Abravanel:
Yitzchak ben Yehuda Outros nomes Isaac ben Judah • Yitzchak ben Yehuda Abravanel Nascimento 23 de setembro de 1437 Lisboa Morte 1508 (71 anos) Veneza Religião Judaísmo Isaac ben Judah ou Yitzchak ben Yehuda Abravanel (hebraico: יצחק בן יהודה אברבנאל; Lisboa, 23 de setembro de 1437 - Veneza, 1508) foi um estadista, filósofo [1], comentador da Bíblia e financista judeu português. Em várias obras ele é referido apenas pelo seu apelido, que por vezes surge como Abravanel, Abarbanel, Avravanel ou Abrabanel. Muitos estudiosos da Torá e do Talmude referem-se a ele simplesmente como "O Abarbanel".
Nasceu em Lisboa em 1437 e viveu vários anos na cidade de Queluz[2]. Faleceu em Veneza em 1508 e foi enterrado em Pádua.
A Família Abravanel é uma das mais antigas e distintas famílias judaicas sefarditas, cuja ascendência direta tem a sua origem ao bíblico, Rei David. Os membros desta família viveram em Córdova (província da Espanha), Calatayud, Castela e Leão e em Sevilha, onde viveu o seu representante mais antigo conhecido de nome Judá Abravanel.[3]
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